quinta-feira, 4 de outubro de 2012

Reportagem:“Se me tiram a televisão, tiram-me a vida”

Em seguida publicamos uma reportagem especial produzida pelo jornal "Diário do Alentejo". Vale a pena ler com atenção!



Aldeia Nova da Favela, Messejana e Canhestros são apenas três exemplos de localidades do distrito de Beja onde continuam a registar-se problemas com a migração para a televisão digital terrestre (TDT), passados que estão quase seis meses sobre a conclusão do processo que ditou a cessação da emissão televisiva analógica terreste. As populações queixam-se de falhas frequentes de sinal de TDT, mesmo depois de terem gasto dinheiro em descodificadores, antenas e até televisores. Várias autarquias já procederam ao levantamento das situações concretas de anomalias e tentam agora, através de acordos firmados com a Anacom – Autoridade de Comunicações (a entidade coordenadora do processo de transição) e com a Telecom (a empresa responsável pela instalação da infraestrutura de rede), encontrar solução para o problema.



Texto Nélia Pedrosa Fotos José Ferrolho



Sentado no poial à porta de casa, no Monte da Oliveirinha (Ourique), indiferente ao frio e ao céu carregado de densas nuvens negras, Francisco de Matos faz a barba tranquilamente. Bacia com água e pincel pousados no chão, lâmina de barbear numa mão, espelho apoiado nas costas de uma cadeira colocada à sua frente. Funcionário público aposentado da Câmara Municipal de Ourique, onde trabalhou durante 33 anos nos mais variados serviços – “andei espalhando alcatrão aí por essas estradas, numa máquina, andei abrindo valetas, fui jardineiro no castelo” –, o septuagenário preenche os dias cuidando “do hortejo e de duas ovelhinhas” e ajudando a mulher, atualmente a recuperar de uma cirurgia que lhe deixou algumas mazelas.
Agora que já não saem “para lado nenhum”, porque “a idade” de ambos e os problemas de saúde de Adélia “já não o permitem”, a televisão é uma das principais distrações do casal, principalmente à hora de almoço e ao serão. Adélia delicia-se com a Júlia Pinheiro, “com a forma como ela fala com as pessoas”, e com as telenovelas da TVI. Francisco aprecia as touradas e os noticiários. Mas desde que fizeram a migração para a televisão digital terrestre (TDT), raro não é o dia em que não se deparam com falhas na receção do sinal.
“Fico aborrecido por não se ver nada. À noite, ao serão, às vezes está a dar uma novela, ou outra coisa qualquer que gostamos de ver, e depois aparece um quadrozito, por vezes letras, estamos ali um quarto de hora, meia hora, e a imagem não regressa, então desligamos e vamo-nos deitar, é o que a gente faz. Até já disse à mulher que o melhor é levar a televisão lá além para o balde do lixo, assim acabava-se com isso”, diz Francisco de Matos.
Em “descodificadores, cabos e antenas“, o casal Matos, a filha e o genro, que vivem na casa ao lado, gastaram “cerca de 200 euros”. No caso da filha, acresce à conta uma nova televisão. “Disseram para comprarmos uma televisão das novas, que tem tudo incluído, que se via bem, que não havia problema. Não há problema? Acontece o mesmo que à do meu sogro, que é velha. É a mesma coisa”, lamenta o genro, Alberto Samora.
Do Monte da Oliveirinha avista-se a Aldeia Nova da Favela, também conhecida por Favela Nova, localidade da freguesia de Ourique habitada por poucas dezenas de pessoas, na sua esmagadora maioria idosas e que se distribuem apenas por duas ruas – “a rua principal [rua Engenheiro Sena Cabral] e a rua da Igreja”. Aqui também as queixas de frequentes falhas de sinal se repetem.
Irene Guerreiro, 83 anos, que caiu na tarde do dia anterior, magoando uma perna, repousa na cozinha, impedida que está de fazer grandes movimentos. Se a televisão já lhe fazia companhia enquanto tratava dos seus afazeres domésticos, nos próximos dias ainda lhe deverá fazer mais. “É uma grande companhia, principalmente no inverno, porque sou só eu e o meu marido”, diz entre queixumes de dor.
“Com a perna assim vai ser complicado. Vai passar mais tempo em casa e precisará mais da televisão para lhe fazer companhia. Agora que estou de férias sempre estou mais acessível durante o dia, se não fosse assim só passaríamos à noite”, acrescenta a nora, Inês Ramos de 35 anos, também ela afetada pela falta de sinal de TDT. “Sinceramente custa-me mais por causa das miúdas, uma tem oito anos e a outra tem três. E o meu marido também gosta de ver televisão. Eu não ligo muito, nos telejornais também só dão desgraças. Mas também não estou para por televisão paga, eu e o meu marido não temos ordenado para isso”, conclui.
À Junta de Freguesia de Messejana, no concelho vizinho de Aljustrel, já chegou um número significativo de reclamações a dar conta de dificuldades na receção do sinal de TDT. Edeme Correia, 84 anos, que encontramos na praça 1.º de Julho a caminho da mercearia, é uma das queixosas. Mas não o faz só a pensar em si, porque não é “egoísta”, vai logo avisando. Fá-lo também a pensar nos seus conterrâneos de parcos recursos, que não podem gastar “20 ou 25 euros por mês” por um serviço de televisão paga, neste momento “a única forma de se poder ver televisão sem problemas” [a TDT não afeta os serviços de televisão por subscrição]. “Eu não falo só por mim, falo é pelas outras pessoas, porque graças a Deus ainda podia pagar, mas há pessoas que não podem. Então uma pessoa que tenha uma reforma de 250 euros, pode estar tirando 20 ou 25 euros todos os meses por causa da televisão, e então o resto? Medicamentes e às vezes já fraldas, e essas coisas todas. Tudo custa dinheiro”.
Como durante o dia anda “a serigaitar pelas ruas”, entre “visitas a amigos e a doentes a residir no lar”, é nos períodos em que prepara as suas refeições e ao serão que mais vê televisão, ou melhor, que tenta ver, ironiza. “As falhas de sinal acontecem mais à noite. Mas há três dias que vejo bem. Depois sou capaz de estar quatro, cinco dias sem ver. Vejo um bocado, depois começam aquelas trapalhadas, parece roupa lavada pendurada na corda. E fico sem sinal, acabo por desligar e deixar-me dormir, mas aborrece porque sempre gosto de ver a telenovela ‘Louco amor’, da TVI, e as outras que dão a seguir, assim como o noticiário”. A viver sozinha, há dias em que acaba por ir ver televisão a casa do irmão, que “tem os canais todos”. Mas com a chegada do inverno, e das noites frias, diz, as saídas noturnas acabarão: “Depois não posso vir às 10, 11 horas da noite para casa, que é quando acabam as novelas, porque já está muito frio”.
Com uma modesta reforma e a viver sozinha, Mariana Salgueiro, de 84 anos, é uma das conterrâneas de Edeme Correia que não se pode dar ao luxo de subscrever um serviço pago de televisão. Por isso, quando o aparelho começa a ficar “com listas encarnadas”, aproveita para fazer “um pouquinho de croché, se ainda é cedo”, para ler uma revista herdada de uma das irmãs ou para rezar. “A televisão é a minha companhia, como não tenho gatos, nem gatas, é a televisão. As minhas vizinhas todas, e as minhas irmãs, têm televisão paga, com quarenta e tal canais, mas a mim só me interessam os quatro, e a dois [RTP 2] quase nunca vejo”. Mas pior, diz, estão as pessoas “que moram nos montes isolados”, sem vizinhos por perto. “A gente aqui ainda tem uma vizinha ou outra, mas aquela gente que vive em montes isolados, quando fica sem televisão, vai ver o quê? Isto que fizeram [a migração para a TDT] é, na verdade, uma tristeza”, desabafa.
Marisa Gonçalves, que vive a escassos metros de Mariana Salgueiro, à reclamação entregue na Junta de Freguesia de Messejana acrescenta um sem número de telefonemas feitos para o número disponibilizado pela Telecom (empresa responsável pela instalação da infraestrutura de rede necessária para cobrir todo o País com televisão digital) para tratar de assuntos relacionados com o processo de migração. Num dos últimos contactos foi aconselhada “a comprar mais um aparelho para amplificar a intensidade da rede”, mas mesmo assim ainda teria que adquirir uma antena parabólica “para resolver o problema”. “Nós comprámos uma antena e dois descodificadores, gastámos cerca de 150 e 200 euros. Este novo aparelho de que falaram e a antena parabólica não sei quanto custam, mas eles é que deviam resolver o problema”, diz a animadora sociocultural de 32 anos. Marisa vai continuar a aguardar pela resolução do problema, mas não sabe por quanto tempo. “Sou apologista de esperar mais algum tempo mas se não se resolver em alguns meses terei que optar pela televisão paga”, diz, quase resignada.
Seguimos para Canhestros, no concelho de Ferreira do Alentejo, onde o assunto do dia é o rebentamento da caixa automática instalada na junta de freguesia. Os assaltantes não conseguiram levar o dinheiro mas deixaram atrás de si um rasto de destruição. Joaquim Maia, 49 anos, um dos funcionários da autarquia, mostra-nos as janelas, portas e estores destruídos ao mesmo tempo que vai dando conta da sua experiência com a TDT: “Já mudei de antena, já meti cabos e mais um aparelho que eles dizem que reforça o sinal, nem faço ideia do que já gastei, se calhar uns 200 euros. Às vezes a gente está com a cegueira de ver um programa qualquer e é quando a televisão fica cheia de manchas, vermelhas, azuis, e a imagem a desaparecer. Pode estar assim cinco minutos, como pode estar dois, incomoda e muito”.
O que também incomoda, diz, são os comerciais dos operadores privados de televisão “que insistem, batem à porta das pessoas dia e noite, para as pessoas aderirem”. “Eu não faço intenções de aderir. Mas há pessoas na aldeia que já o fizeram, saturadas que estão de não verem televisão”.
“Se me tiram a televisão, tiram-‑me a vida”. As palavras de Eglantina Moderno, 76 anos, demostram bem a importância que a “caixinha mágica” tem no seu dia a dia. Viúva há 11 anos e com os quatro filhos já independentes, a televisão tornou-se a sua “companha”, a sua principal distração, uma vez que por questões de saúde pouco pode fazer. “Não posso estar muito tempo de pé, são dores nos joelhos, na coluna, em todo lado. Deixei de poder fazer a comida. Sempre limpo o pó, mas pouco, e assim vou indo”, diz, ainda abalada com a notícia da tentativa de assalto à caixa multibanco da sua aldeia.
Os seus gostos televisivos vão da telenovela “Dancing Days”, da SIC – “adoro a minha júlia” [personagem principal] – ao telejornal, embora “pouco” perceba, passando pela tourada, algo que aprendeu a apreciar com o marido. “A graça que isto tem é que eu nem gostava de tourada. O cavalo sofria, o touro sofria, o homem sofria, e eu sou muito coração mole. Mas o meu marido era capaz de ir lá fora se fosse preciso para ver uma tourada, e eu comecei a ver com ele. Então não é que encegueirei? Agora não falho uma, principalmente quando é com o meu primo segundo, o toureiro Luís Rouxinol. Ele é um artista”.



Autarquias identificam centenas de anomaliasOurique, Santana da Serra, Panoias, Garvão e Conceição são as localidades do concelho de Ourique “onde as falhas de sinal de TDT incidem mais”, adianta ao “Diário do Alentejo” o presidente da câmara municipal. “O processo TDT continua com falhas. Há uma zona sombra em que as pessoas têm que adquirir equipamentos de captação via satélite e algumas delas não têm condições para o fazer. Por outro lado, por razões meteorológicas ou por falhas técnicas, há perdas constantes de sinal”. De acordo com Pedro do Carmo, de uma reunião realizada em agosto último resultou um acordo com a PT, sendo que “no prazo de uma semana a empresa irá efetuar em todos os locais que a câmara indicou medições de sinal”. “Depois de chegar à conclusão, caso a caso, se é falta de sinal, e aí temos que ir para a captação via satélite, ou se é algum defeito na instalação, as situações serão ultrapassadas”, assegura, adiantando que até ao momento foram identificadas “três centenas de situações”.
“Preocupante”. É assim que o presidente da Câmara de Aljustrel apelida a situação atual do concelho em termos de receção de sinal de TDT. “Temos muitos sítios do território em que há problemas da mais variada ordem, mas o mais confrangedor é sabermos que são territórios de baixa densidade, com pessoas muito idosas, que não têm a mesma disponibilidade para as novas tecnologias que outras gerações”. Nelson Brito considera que todo este processo acaba por ter “consequências muito graves”: “Volvidos estes anos todos as pessoas não têm direito à televisão, que é de facto um meio de informação por excelência, que em muitos sítios recônditos coloca as pessoas em contacto com o mundo. Retrocedemos 30, 40 anos nesta questão. Temos neste momento sítios onde as pessoas ouvem rádio para estarem ligadas ao mundo”. A câmara, em conjunto com as juntas de freguesia, está a proceder ao levantamento “de situações concretas de anomalias detetadas na receção do sinal da TDT”, que depois encaminhará para a Telecom e para a Anacom, entidades a quem já solicitou reuniões. Até ao momento as autarquias receberam “mais de 600 reclamações”.
O “Diário do Alentejo” tentou ainda obter declarações junto do presidente da Câmara de Ferreira do Alentejo, mas tal não foi possível em tempo útil. NP
Texto e Fotos: Diário do Alentejo

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