Em seguida publicamos uma reportagem especial produzida pelo jornal "Diário do Alentejo". Vale a pena ler com atenção!
Aldeia Nova da Favela, Messejana e Canhestros são apenas três exemplos de
localidades do distrito de Beja onde continuam a registar-se problemas com a
migração para a televisão digital terrestre (TDT), passados que estão quase seis
meses sobre a conclusão do processo que ditou a cessação da emissão televisiva
analógica terreste. As populações queixam-se de falhas frequentes de sinal de
TDT, mesmo depois de terem gasto dinheiro em descodificadores, antenas e até
televisores. Várias autarquias já procederam ao levantamento das situações
concretas de anomalias e tentam agora, através de acordos firmados com a Anacom
– Autoridade de Comunicações (a entidade coordenadora do processo de transição)
e com a Telecom (a empresa responsável pela instalação da infraestrutura de
rede), encontrar solução para o problema.
Texto Nélia
Pedrosa Fotos José Ferrolho
Sentado no poial à porta de casa, no Monte da Oliveirinha (Ourique), indiferente
ao frio e ao céu carregado de densas nuvens negras, Francisco de Matos faz a
barba tranquilamente. Bacia com água e pincel pousados no chão, lâmina de
barbear numa mão, espelho apoiado nas costas de uma cadeira colocada à sua
frente. Funcionário público aposentado da Câmara Municipal de Ourique, onde
trabalhou durante 33 anos nos mais variados serviços – “andei espalhando
alcatrão aí por essas estradas, numa máquina, andei abrindo valetas, fui
jardineiro no castelo” –, o septuagenário preenche os dias cuidando “do hortejo
e de duas ovelhinhas” e ajudando a mulher, atualmente a recuperar de uma
cirurgia que lhe deixou algumas mazelas.
Agora que já não saem “para lado
nenhum”, porque “a idade” de ambos e os problemas de saúde de Adélia “já não o
permitem”, a televisão é uma das principais distrações do casal, principalmente
à hora de almoço e ao serão. Adélia delicia-se com a Júlia Pinheiro, “com a
forma como ela fala com as pessoas”, e com as telenovelas da TVI. Francisco
aprecia as touradas e os noticiários. Mas desde que fizeram a migração para a
televisão digital terrestre (TDT), raro não é o dia em que não se deparam com
falhas na receção do sinal.
“Fico aborrecido por não se ver nada. À noite,
ao serão, às vezes está a dar uma novela, ou outra coisa qualquer que gostamos
de ver, e depois aparece um quadrozito, por vezes letras, estamos ali um quarto
de hora, meia hora, e a imagem não regressa, então desligamos e vamo-nos deitar,
é o que a gente faz. Até já disse à mulher que o melhor é levar a televisão lá
além para o balde do lixo, assim acabava-se com isso”, diz Francisco de
Matos.
Em “descodificadores, cabos e antenas“, o casal Matos, a filha e o
genro, que vivem na casa ao lado, gastaram “cerca de 200 euros”. No caso da
filha, acresce à conta uma nova televisão. “Disseram para comprarmos uma
televisão das novas, que tem tudo incluído, que se via bem, que não havia
problema. Não há problema? Acontece o mesmo que à do meu sogro, que é velha. É a
mesma coisa”, lamenta o genro, Alberto Samora.
Do Monte da Oliveirinha
avista-se a Aldeia Nova da Favela, também conhecida por Favela Nova, localidade
da freguesia de Ourique habitada por poucas dezenas de pessoas, na sua
esmagadora maioria idosas e que se distribuem apenas por duas ruas – “a rua
principal [rua Engenheiro Sena Cabral] e a rua da Igreja”. Aqui também as
queixas de frequentes falhas de sinal se repetem.
Irene Guerreiro, 83 anos,
que caiu na tarde do dia anterior, magoando uma perna, repousa na cozinha,
impedida que está de fazer grandes movimentos. Se a televisão já lhe fazia
companhia enquanto tratava dos seus afazeres domésticos, nos próximos dias ainda
lhe deverá fazer mais. “É uma grande companhia, principalmente no inverno,
porque sou só eu e o meu marido”, diz entre queixumes de dor.
“Com a perna
assim vai ser complicado. Vai passar mais tempo em casa e precisará mais da
televisão para lhe fazer companhia. Agora que estou de férias sempre estou mais
acessível durante o dia, se não fosse assim só passaríamos à noite”, acrescenta
a nora, Inês Ramos de 35 anos, também ela afetada pela falta de sinal de TDT.
“Sinceramente custa-me mais por causa das miúdas, uma tem oito anos e a outra
tem três. E o meu marido também gosta de ver televisão. Eu não ligo muito, nos
telejornais também só dão desgraças. Mas também não estou para por televisão
paga, eu e o meu marido não temos ordenado para isso”, conclui.
À Junta de
Freguesia de Messejana, no concelho vizinho de Aljustrel, já chegou um número
significativo de reclamações a dar conta de dificuldades na receção do sinal de
TDT. Edeme Correia, 84 anos, que encontramos na praça 1.º de Julho a caminho da
mercearia, é uma das queixosas. Mas não o faz só a pensar em si, porque não é
“egoísta”, vai logo avisando. Fá-lo também a pensar nos seus conterrâneos de
parcos recursos, que não podem gastar “20 ou 25 euros por mês” por um serviço de
televisão paga, neste momento “a única forma de se poder ver televisão sem
problemas” [a TDT não afeta os serviços de televisão por subscrição]. “Eu não
falo só por mim, falo é pelas outras pessoas, porque graças a Deus ainda podia
pagar, mas há pessoas que não podem. Então uma pessoa que tenha uma reforma de
250 euros, pode estar tirando 20 ou 25 euros todos os meses por causa da
televisão, e então o resto? Medicamentes e às vezes já fraldas, e essas coisas
todas. Tudo custa dinheiro”.
Como durante o dia anda “a serigaitar pelas
ruas”, entre “visitas a amigos e a doentes a residir no lar”, é nos períodos em
que prepara as suas refeições e ao serão que mais vê televisão, ou melhor, que
tenta ver, ironiza. “As falhas de sinal acontecem mais à noite. Mas há três dias
que vejo bem. Depois sou capaz de estar quatro, cinco dias sem ver. Vejo um
bocado, depois começam aquelas trapalhadas, parece roupa lavada pendurada na
corda. E fico sem sinal, acabo por desligar e deixar-me dormir, mas aborrece
porque sempre gosto de ver a telenovela ‘Louco amor’, da TVI, e as outras que
dão a seguir, assim como o noticiário”. A viver sozinha, há dias em que acaba
por ir ver televisão a casa do irmão, que “tem os canais todos”. Mas com a
chegada do inverno, e das noites frias, diz, as saídas noturnas acabarão:
“Depois não posso vir às 10, 11 horas da noite para casa, que é quando acabam as
novelas, porque já está muito frio”.
Com uma modesta reforma e a viver
sozinha, Mariana Salgueiro, de 84 anos, é uma das conterrâneas de Edeme Correia
que não se pode dar ao luxo de subscrever um serviço pago de televisão. Por
isso, quando o aparelho começa a ficar “com listas encarnadas”, aproveita para
fazer “um pouquinho de croché, se ainda é cedo”, para ler uma revista herdada de
uma das irmãs ou para rezar. “A televisão é a minha companhia, como não tenho
gatos, nem gatas, é a televisão. As minhas vizinhas todas, e as minhas irmãs,
têm televisão paga, com quarenta e tal canais, mas a mim só me interessam os
quatro, e a dois [RTP 2] quase nunca vejo”. Mas pior, diz, estão as pessoas “que
moram nos montes isolados”, sem vizinhos por perto. “A gente aqui ainda tem uma
vizinha ou outra, mas aquela gente que vive em montes isolados, quando fica sem
televisão, vai ver o quê? Isto que fizeram [a migração para a TDT] é, na
verdade, uma tristeza”, desabafa.
Marisa Gonçalves, que vive a escassos
metros de Mariana Salgueiro, à reclamação entregue na Junta de Freguesia de
Messejana acrescenta um sem número de telefonemas feitos para o número
disponibilizado pela Telecom (empresa responsável pela instalação da
infraestrutura de rede necessária para cobrir todo o País com televisão digital)
para tratar de assuntos relacionados com o processo de migração. Num dos últimos
contactos foi aconselhada “a comprar mais um aparelho para amplificar a
intensidade da rede”, mas mesmo assim ainda teria que adquirir uma antena
parabólica “para resolver o problema”. “Nós comprámos uma antena e dois
descodificadores, gastámos cerca de 150 e 200 euros. Este novo aparelho de que
falaram e a antena parabólica não sei quanto custam, mas eles é que deviam
resolver o problema”, diz a animadora sociocultural de 32 anos. Marisa vai
continuar a aguardar pela resolução do problema, mas não sabe por quanto tempo.
“Sou apologista de esperar mais algum tempo mas se não se resolver em alguns
meses terei que optar pela televisão paga”, diz, quase resignada.
Seguimos
para Canhestros, no concelho de Ferreira do Alentejo, onde o assunto do dia é o
rebentamento da caixa automática instalada na junta de freguesia. Os assaltantes
não conseguiram levar o dinheiro mas deixaram atrás de si um rasto de
destruição. Joaquim Maia, 49 anos, um dos funcionários da autarquia, mostra-nos
as janelas, portas e estores destruídos ao mesmo tempo que vai dando conta da
sua experiência com a TDT: “Já mudei de antena, já meti cabos e mais um aparelho
que eles dizem que reforça o sinal, nem faço ideia do que já gastei, se calhar
uns 200 euros. Às vezes a gente está com a cegueira de ver um programa qualquer
e é quando a televisão fica cheia de manchas, vermelhas, azuis, e a imagem a
desaparecer. Pode estar assim cinco minutos, como pode estar dois, incomoda e
muito”.
O que também incomoda, diz, são os comerciais dos operadores
privados de televisão “que insistem, batem à porta das pessoas dia e noite, para
as pessoas aderirem”. “Eu não faço intenções de aderir. Mas há pessoas na aldeia
que já o fizeram, saturadas que estão de não verem televisão”.
“Se me tiram a
televisão, tiram-‑me a vida”. As palavras de Eglantina Moderno, 76 anos,
demostram bem a importância que a “caixinha mágica” tem no seu dia a dia. Viúva
há 11 anos e com os quatro filhos já independentes, a televisão tornou-se a sua
“companha”, a sua principal distração, uma vez que por questões de saúde pouco
pode fazer. “Não posso estar muito tempo de pé, são dores nos joelhos, na
coluna, em todo lado. Deixei de poder fazer a comida. Sempre limpo o pó, mas
pouco, e assim vou indo”, diz, ainda abalada com a notícia da tentativa de
assalto à caixa multibanco da sua aldeia.
Os seus gostos televisivos vão da
telenovela “Dancing Days”, da SIC – “adoro a minha júlia” [personagem principal]
– ao telejornal, embora “pouco” perceba, passando pela tourada, algo que
aprendeu a apreciar com o marido. “A graça que isto tem é que eu nem gostava de
tourada. O cavalo sofria, o touro sofria, o homem sofria, e eu sou muito coração
mole. Mas o meu marido era capaz de ir lá fora se fosse preciso para ver uma
tourada, e eu comecei a ver com ele. Então não é que encegueirei? Agora não
falho uma, principalmente quando é com o meu primo segundo, o toureiro Luís
Rouxinol. Ele é um artista”.
Autarquias identificam centenas de anomaliasOurique,
Santana da Serra, Panoias, Garvão e Conceição são as localidades do concelho de
Ourique “onde as falhas de sinal de TDT incidem mais”, adianta ao “Diário do
Alentejo” o presidente da câmara municipal. “O processo TDT continua com falhas.
Há uma zona sombra em que as pessoas têm que adquirir equipamentos de captação
via satélite e algumas delas não têm condições para o fazer. Por outro lado, por
razões meteorológicas ou por falhas técnicas, há perdas constantes de sinal”. De
acordo com Pedro do Carmo, de uma reunião realizada em agosto último resultou um
acordo com a PT, sendo que “no prazo de uma semana a empresa irá efetuar em
todos os locais que a câmara indicou medições de sinal”. “Depois de chegar à
conclusão, caso a caso, se é falta de sinal, e aí temos que ir para a captação
via satélite, ou se é algum defeito na instalação, as situações serão
ultrapassadas”, assegura, adiantando que até ao momento foram identificadas
“três centenas de situações”.
“Preocupante”. É assim que o presidente da
Câmara de Aljustrel apelida a situação atual do concelho em termos de receção de
sinal de TDT. “Temos muitos sítios do território em que há problemas da mais
variada ordem, mas o mais confrangedor é sabermos que são territórios de baixa
densidade, com pessoas muito idosas, que não têm a mesma disponibilidade para as
novas tecnologias que outras gerações”. Nelson Brito considera que todo este
processo acaba por ter “consequências muito graves”: “Volvidos estes anos todos
as pessoas não têm direito à televisão, que é de facto um meio de informação por
excelência, que em muitos sítios recônditos coloca as pessoas em contacto com o
mundo. Retrocedemos 30, 40 anos nesta questão. Temos neste momento sítios onde
as pessoas ouvem rádio para estarem ligadas ao mundo”. A câmara, em conjunto com
as juntas de freguesia, está a proceder ao levantamento “de situações concretas
de anomalias detetadas na receção do sinal da TDT”, que depois encaminhará para
a Telecom e para a Anacom, entidades a quem já solicitou reuniões. Até ao
momento as autarquias receberam “mais de 600 reclamações”.
O “Diário do
Alentejo” tentou ainda obter declarações junto do presidente da Câmara de
Ferreira do Alentejo, mas tal não foi possível em tempo útil. NP
Texto e Fotos: Diário do Alentejo
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